Professores
procuram na linguagem teatral uma forma de melhorar suas aulas e
descobrem infinitas possibilidades de trabalhar conteúdos diversos com
os alunos
Frederico Guimarães
Com
uma bengala na mão e um guarda-chuva na outra, o professor de língua
portuguesa Júlio César Sbarrais caminha com dificuldade pelos corredores
da Escola Estadual Padre Afonso Paschotte, em Mauá, na Grande São
Paulo. Enquanto os alunos aguardam o início da aula, ele abre a porta da
classe caracterizado da cabeça aos pés: sapatos extravagantes, calças
coloridas, maquiagem no rosto e um nariz de palhaço. Fantasia caprichada
para arrancar sorrisos dos estudantes da 8ª série do ensino
fundamental.
+ Assista a trechos da aula do professor Júlio César Sbarrais
Formado em Letras e Artes Cênicas, Júlio César é o que se pode chamar
de "artista-docente", expressão utilizada para denominar educadores que
trabalham com a linguagem artística em suas propostas pedagógicas.
Desde 2007, o professor recorre ao palhaço "Tinin" para tornar as suas
atividades com os alunos mais lúdicas. "Há uma questão pedagógica e
didática na linguagem teatral. Apesar de o palhaço ser mudo, ele passa
as regras de convivência em sala de aula. Eu uso lousa e giz, mas
utilizo o palhaço como uma forma de conquistar o aluno, que tem de dar
conta de muita coisa. Esses projetos são válidos no sentido de amenizar a
sobrecarga do conteúdo ensinado", afirma o docente.
Guia práticoAssim
como Júlio César, diversos professores têm aderido ao teatro para
ensinar conteúdos de disciplinas como português, história, física e
matemática. Segundo a psicóloga e professora de teatro Ana Betina Rugna,
90% dos seus alunos são professores que querem aprender a utilizar a
linguagem teatral nas salas de aula. Autora do livro Teatro em sala de
aula (Editora Alaúde), Betina elaborou um guia prático para os
professores que desejam explorar esses recursos com seus alunos.Em sua
experiência com os docentes, Betina observou que os professores sentiam
insegurança por não conseguirem transmitir suas ideias de forma clara e
criativa.
Para ela, a linguagem teatral pode transformar os professores.
"Quando eu trabalho com o professor ele se redescobre, tanto quanto a
criança. Assim como as crianças, eles começam de um jeito, mas terminam o
curso diferentes, fazendo uma redescoberta do outro e de si mesmos",
avalia.
Professor de artes cênicas da Escola Lourenço Castanho, em São Paulo,
Pedro Haddad concorda com Betina. "A escola é um lugar essencial para
que as crianças tenham o primeiro contato com o teatro, mesmo que não
seja unicamente pela disciplina de artes cênicas. A linguagem pode ser
utilizada de maneira muito feliz como complemento e incremento das
dinâmicas dentro da sala de aula", acredita.
O número de professores formados na área ainda é pequeno, mesmo que a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) estabeleça o ensino da arte
como obrigatório. Na maioria das vezes, a utilização do teatro na
escola se restringe à disciplina de artes cênicas, quando há, e que nem
sempre consegue dialogar com outras matérias. Além disso, o Referencial
Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) estabelece metas de
qualidade para o desenvolvimento do ensino das crianças na creche e na
pré-escola, mas não menciona a utilização do teatro como mecanismo de
aprendizagem.
FormaçãoBetina
Rugna explica que tirar o teatro do palco e levá-lo para dentro da sala
de aula é simples, mas exige calma e conhecimento da parte do
profissional. "O ensino do teatro não é apenas fazer uma peça e pronto.
Primeiro, a criança descobre o corpo como ferramenta, depois começa a
utilizar linguagens verbais e não verbais, depois trabalha a parte da
expressão falada e não falada, depois as duas juntas, até que ela domina
essa arte e pode dialogar com outros saberes. Faz parte da vivência. Se
você for pensar bem, o teatro é uma grande brincadeira, pois todos nós o
utilizamos no dia a dia", diz.
Na opinião dela, não é preciso ser formado na área para se arriscar
na linguagem."Os jogos teatrais ajudam a fixar os conteúdos, mas também a
desenvolver outras linguagens, tanto verbais, quanto não verbais.
Quando o professor fala sobre os sentidos, está ensinando ciências.
Quando lê um texto e o interpreta, a criança está trabalhando a
criatividade e o vocabulário. O tempo todo o teatro trabalha uma função
específica, por meio da linguagem", defende.
Já para o professor de artes cênicas Pedro Haddad, essas atividades
podem ajudar no aprendizado, mas dependem de como são usadas em sala de
aula. "Por seu caráter coletivo e lúdico, as dinâmicas teatrais
proporcionam experiências que promovem o envolvimento das crianças de
maneira única. Mas é importante notar que as dinâmicas, por si só, não
levam a nada, e é essencial que elas sejam bem conduzidas e acompanhadas
de uma reflexão. Para isto o professor deve sim se preparar", salienta.
Assim como ele, alguns profissionais que trabalham com o teatro temem
que sua dinâmica nas escolas seja reduzida à condição de suporte para
outras disciplinas. "É interessante que o teatro possa mediar e fazer
parte desses projetos interdisciplinares, mas há de se ter um pouco de
cuidado para que ele não perca aquilo que lhe é valoroso", reitera o
professor da ECA da Universidade de São Paulo (USP), Flávio Desgranges.
Interpretando a matemáticaMesmo
sem formação teatral, o professor João Batista do Nascimento conseguiu o
que poderia parecer impossível: materializar conceitos matemáticos
abstratos para crianças da 3ª e 4ª séries.Vestidos de figuras
geométricas, os alunos dão vida a personagens como "sujeito quadrado",
"triângulo amoroso" e "círculo vicioso" em um espetáculo sobre geometria
plana, que chegou a ser divulgado até em Portugal. "A aplicação com as
crianças foi simplesmente fenomenal. Elas compreenderam o essencial:
estudar matemática e dialogar entre elas por meio desses saberes", diz o
professor, que é da Faculdade de Matemática do Instituto de Ciências
Exatas e Naturais (Icen) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e
realiza esse projeto de extensão há dez anos.
João Batista critica a capacidade dos professores de serem claros no
momento da transmissão do conteúdo. "A maior dificuldade para tornar o
ensino didático sempre fica do lado do docente, pois já tendo uma ideia
preconcebida de como ensinar a matéria, ele acaba resistindo a novas
possibilidades criadas pelos alunos e, às vezes, impõe o seu modelo de
ensino", analisa.
Para a professora Andrea Gonçalves Poligicchio, que durante dez anos
deu aulas na escola da Fundação Bradesco, em Osasco, na Grande São
Paulo, o teatro empresta a oralidade que falta à matemática. "Assim, a
linguagem simbólica da disciplina não precisa ficar sendo explicada toda
hora e tudo ocorre de uma forma natural", defende.
Nas aulas de Andrea, os alunos eram convidados a interpretar alguns
textos e, com o passar do tempo, a turma resolveu que o conteúdo poderia
ser adaptado em uma peça. "Geralmente nós pegávamos um conto de fadas e
fazíamos uma adaptação. Lembro de uma aluna que escreveu Romeu e
Julieta e incorporou diversas lições de matemática às falas dos
personagens. Os conteúdos eram aprendidos de forma divertida e natural
por meio da linguagem teatral", relembra Andrea, que defendeu
dissertação de mestrado pela Universidade de São Paulo (USP), sob título
"A materialização da narrativa matemática". Andrea atualmente dá aulas
no Colégio Santa Cruz, em São Paulo.
Reescrevendo a históriaPara
o professor Flávio Desgranges, do Departamento de Artes Cênicas da
Universidade de São Paulo (USP), um método bastante eficaz na hora de
transportar o teatro para a sala de aula é o método de Drama, de origem
anglo-saxônica, e que pode ser utilizado na disciplina de história, por
exemplo.
Flávio conta que teve contato com o método em uma oficina para
professores, desenvolvida pelo educador inglês Joe Winston em Bruxelas,
na Bélgica. De acordo com ele, o processo se constitui como construção
conjunta de uma narrativa teatral, e por isso pode ser entendido como
uma forma de arte coletiva, em que professor e alunos assumem as funções
de dramaturgos, diretores, atores, espectadores e pesquisadores. "O
Drama trabalha muito a partir do texto. Ele pode trazer a possibilidade
da luz em cena, ou a possibilidade da inserção de objetos cênicos, ou
mesmo uma palavra, ou um gesto. Esse método pode criar jogos de
improvisação a partir de jogos teatrais", afirma Flávio.
Sem ter uma ideia preconcebida do Drama, um pesquisador brasileiro
desenvolveu uma metodologia que lembra algumas técnicas do método
inglês. Inspirado em experiências de educação popular e em movimentos
sociais, o professor de história da África da Universidade Estadual da
Paraíba (UEPB), Waldeci Ferreira Chagas, agregou uma linguagem
totalmente diferente para contar a história das populações negras. Ao
invés de apostilas, ele propôs utilizar o teatro de bonecos, propiciando
que professores e alunos desenvolvessem a confecção dos bonecos, o
enredo e o cenário das aulas.
"O livro deve ser o pretexto para as aulas e não o único meio de
aprender", afirma Waldeci. "O texto construído e encenado para o teatro
de bonecos não é uma cópia do que está no texto do livro didático, mas
transcende a interpretação e abordagem que este traz. Nesse aspecto,
acredito que a inserção da arte no currículo escolar e o diálogo dela
com outras áreas de conhecimento auxiliam no processo de
ensino-aprendizagem", explica o pesquisador, que aplicou a metodologia
com diversos alunos da UEPB em 2003.
Apesar da iniciativa, os educadores tiveram dificuldades em replicar a
proposta com professores de escolas do município de Guarabira, se
contentando com algumas apresentações que ocorreram na época em que seu
método foi aplicado.
Waldeci garante, entretanto, que com a utilização dos bonecos no
cotidiano escolar os alunos saíram da condição de meros ouvintes e
passaram a "reescrever" a história, reconstruindo a narrativa das aulas e
estreitando a relação entre os estudantes e os professores.
No cangaçoJúlio
César Sbarrais, o palhaço "Tinin" do começo do texto, também utiliza
outros personagens para ensinar língua portuguesa. Um dos seus
preferidos, o cangaceiro Lampião, é frequentemente utilizado nas aulas
de literatura de cordel. "Acho interessante trabalhar o lúdico dentro da
realidade. Claro que pelo teatro eu consigo brincar com diversas
linguagens. Na língua portuguesa, eu posso utilizar estilos musicais e
aproveitar as mais variadas formas de estudo para transformar o
aprendizado do aluno", explica.
Para que os alunos possam participar de uma forma mais ativa das
aulas, Júlio utiliza o livro Lampião e Lancelote, escrito por Fernando
Vilela. A partir daí, ele organiza os alunos em uma roda e divide a
prosa com os estudantes. Enquanto um interpreta Lampião, o outro vira
Lancelote, e as palmas acompanham o ritmo que o professor embala em um
pandeiro.
"É uma experiência diferente. Se o professor é criativo, ele cativa a
atenção e a matéria fica mais interessante", diz a estudante Ainna
Júlia, da 8ª série do ensino fundamental da Escola Estadual Padre Afonso
Paschotte, em São Paulo.
"A relação da educação com o teatro mostra que é possível e viável
trabalhar todas as disciplinas do currículo escolar. O grande lance do
teatro é você fazer desde um espetáculo até uma apresentação em um
espaço simples, dentro da sala de aula", propõe Betina.
Resistência inicial |
A dificuldade em dialogar com os alunos em sala de
aula foi um dos motivos que fizeram com que o professor Márcio Medina
traçasse novos caminhos no ensino da física para os estudantes do ensino
médio do Colégio Qi, no Rio de Janeiro. "Nós estávamos com alguns
alunos muito arredios a aprender, então sugeri ao grupo fazer uma peça
de teatro que abordasse os conteúdos ensinados em sala de aula", afirma o
docente.
A primeira peça adaptada foi A vida de Galileu (2007),
obra do autor alemão Bertolt Brecht. Com algumas modificações no texto
original, os alunos começaram a ensaiar o espetáculo no Núcleo do Teatro
Científico (Nutec) do Colégio Qi, criado a partir da iniciativa do
professor Medina. Em uma semana eles estrearam o espetáculo. "Foi
surpreendente. Os pais, os amigos dos alunos, os diretores da escola
ficaram encantados. A qualidade do trabalho foi acima do esperado.
Quando um dos donos da escola viu o espetáculo, ele me abraçou com
lágrimas nos olhos e disse: "obrigado por essa oportunidade de eu ter
visto o Galileu em teatro", relembra o professor.
Apesar do sucesso, Medina admite que no início sua
proposta não era unanimidade. "Qualquer atividade extracurricular em uma
escola tradicional é vista com desconfiança. Mas eles começaram a
perceber que o trabalho não era sem propósito. O teatro estreitou o laço
afetivo entre o professor e o aluno. E a linguagem, que é tão formal
dentro da sala de aula, ficou mais informal e clara durante o processo",
avalia. |
A neurociência explica |
Para a professora de Neurociência Pedagógica, Marta
Relvas, uma boa forma de se conectar com os alunos é entender que "a
razão é uma emoção elaborada". "Todo o sistema nervoso é uma estrutura
orgânica que recebe estímulos através de canais sensoriais. Portanto,
quando uma informação chega ao cérebro, ela passa antes por processos
emocionais. Isso mostra que o professor precisa caminhar com seus
conteúdos em sala de aula tendo atenção no aluno. O professor sempre
será uma peça fundamental em despertar o interesse no estudante",
explica a professora.
Em seu livro Neurociência e Educação, gêneros e
potencialidades na sala de aula (WAK Editora, 2010), ela defende que
trabalhar o corpo é uma forma de assimilar melhor o conteúdo ensinado.
"80% do nosso cérebro é baseado em emoção. Quando o educador estimula o
cérebro do aluno a criar, a sala de aula passa a ser um local prazeroso.
Aprender é um ato desejante. Se o professor utiliza uma didática
teatral, em que o aluno pode utilizar o corpo para aprender, ele
consegue assimilar 60% da mensagem do professor, enquanto numa aula em
que ele fica sentado, assimila somente 20% do conteúdo", diz a
professora. |
Trabalhando a percepção |
Uma boa forma de fortalecer o aprendizado dos alunos é
trabalhar a utilização do teatro por meio de aspectos cognitivos. Em
seu livro Teatro em sala de aula, Betina Rugna mostra como os
professores podem aproveitar recursos do próprio corpo para trabalhar a
linguagem teatral com as crianças. Uma das inspirações da autora veio da
personagem "Bla", espécie de fantoche desenhado na mão de um dos
apresentadores do programa Bambalalão, exibido pela TV Cultura de São
Paulo, de 1977 a 1990.
Coordenadora pedagógica do Catavento, outro programa
exibido na TV Cultura na década de 1980, Betina diz como foi trabalhar
com esses programas infantis. "A gente utilizava atividades que
trabalhassem todo o esquema corporal, a percepção sensorial, a
lateralidade, a percepção do espaço. Deixávamos a criança três horas se
vestindo sozinha com um pijama, respeitávamos o espaço dela. Descobrimos
a partir daí que todas as crianças que assistiam ao programa também
ficavam vestindo o pijama", relembra. Na Escola Estadual Padre Afonso
Paschotte, o professor Júlio César também procura desenvolver atividades
que valorizem a percepção e o ambiente escolar. Além do "Jardim da
Leitura" - sarau em que os alunos plantam flores e contam histórias -, o
docente procura dar características humanas a seres inanimados ou a
sentimentos. Júlio César conta que já foi caracterizado de "Zé Preguiça"
para dar aula e espalhou cartazes pelas paredes com a mensagem "Zé
Preguiça, procurado!". "A proposta era estimular as crianças que não
gostavam de ler a se interessar mais pelos estudos. A ideia deu certo e
os alunos desenvolveram redações ótimas explorando o universo da
preguiça", diz o professor, que utilizou livros como travesseiro para
dar vida ao personagem.
Disponível em: http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/199/a-sala-e-um-palcoprofessores-procuram-na-linguagem-teatral-uma-301125-1.asp |